Entrevista no site francês Fanfare
Há alguns dias foi publicada uma entrevista que dei ao Quentin, do site francês Fanfare, em sua série “Os segredos mais bem guardados do pop”.
Publico abaixo a versão original em português.
Leia no Fanfare a tradução para o francês.
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“À frente de seu grupo Supercordas ou em carreira solo, Bonifrate tem reavivado a chama da psicodelia brasileira. De Paraty, no extremo sul do estado do Rio de Janeiro, ele nos fala de suas memórias de infância, de sua cidade, da canção “Para Lennon & McCartney” de Milton Nascimento, de seus futuros projetos, do Século XVI e do Século XXI no Brasil.
- Bom dia, Pedro. Como é que se descreveria em algumas palavras?
Um desses artistas brasileiros que acabam entrando para o serviço público, e que tem alguns discos gravados apesar de trabalhar de 8h às 17h.
- Em qual área do serviço público você trabalha?
Sou Técnico em Assuntos Culturais na área de História de um pequeno museu federal em Paraty, o Forte Defensor Perpétuo. Apesar de ser um forte do início do século XIX, a temática do museu é abrangente, e aborda as culturas tradicionais de Paraty (em especial quilombolas, caiçaras e indígenas), questões históricas da localidade, os saberes e os modos de fazer. Meu trabalho envolve pesquisa documental, montagem de exposições, desenvolvimento de projetos e principalmente atividades educativas para as escolas públicas da cidade.
- Onde você cresceu e o que diria deste lugar ?
Nasci no Rio de Janeiro mas aos quatro já morava em Paraty, que é uma cidade histórica praiana ao sul do estado. Sempre houve uma relação muito forte com ambas as cidades, e com esse translado entre uma e outra, que é uma estrada muito bonita entre a Mata Atlântica e o mar. Morei no Rio entre 1999 e 2012 e foi onde estabeleci minha socialização musical, comecei minha banda Supercordas, estudei história e conheci minha companheira. Paraty, onde voltei a morar em 2012, é uma cidade pequena, de uns 40 mil habitantes, muito visada em termos de recursos naturais, turísticos e culturais. Esta última cidade sempre esteve presente no modo como faço canções. O primeiro disco dos Supercordas, Seres Verdes ao Redor (2006), traz muito da infância e adolescência que passei aqui, principalmente no sentido do contato com a natureza; e meu último disco, Lady Remédios (2017), é um pequeno EP conceitual que trata de Paraty de forma mais direta, um misto de elogio e sátira.
- Qual é seu passatempo favorito quando não faz música ?
Não gosto muito da ideia de ‘passatempo’. Tudo é um passatempo ou um paratempo ou tentativas de reduzir o tempo a alguma coisa que você possa entender. Eu trabalho com cultura e educação, trabalho construindo coletivamente uma familia, e trabalho compondo, arranjando e mixando canções, especialmente quando resta algum tempo pra isso.
- Havia muita música em casa quando era pequenino? Com quem costumava ouvir música ?
Havia um bocado. Meus pais tinham quase todos os discos dos Beatles, que comecei bem cedo a ouvir intensamente. Música brasileira sempre esteve por ali também com alguns discos de Caetano, Gal, Gil, Chico, Milton, etc, mas só bem mais tarde eu fui realmente me interessar. Minha mãe sempre cantou muito, ainda que não profissionalmente; vivia em rodas de samba e coisas do tipo. Tinha um projeto com um músico sueco de música africana, caboverdiana e da Guiné Bissau quando ainda morávamos no Rio, e tenho uma memória remota porém muito forte desse som na minha primeira infância. Foi ela quem me incentivou a aprender música, mesmo eu resistindo um pouco por pura preguiça.
- Pode me dar 1 ou 2 canções de outros artistas que mexem consigo e pode explicar porque?
Raincoats – No Side To Fall In (Raincoats, 1979):
Um amigo me apresentou o primeiro das Raincoats em vinil há uns 2 anos atrás e eu fiquei arrepiado. Como ninguém tinha me mostrado aquilo antes? Como eu não tinha descoberto? Só depois fiquei sabendo da referência do Kurt Cobain no texto do Incesticide e fez bastante sentido pra mim, porque eu amo Nirvana e tal mas o punk rock foi algo em que eu nunca me enfiei muito musicalmente. Se houve algum vislumbre foi no que há de punk em Velvet Underground ou nos Stooges, mas nunca topei mais de Sex Pistols ou de Ramones do que curtir alguns hits e ouvir uns discos esporadicamente quando era bem jovem. Só as Raincoats me fizeram entender o punk rock, ou ao menos que ele pode significar mais musicalmente do que testosterona revoltada. Essas minas que moravam em squats no final dos anos 70 e cantavam sobre a vida e sobre a música desse jeito, esse existencialismo de sobrevivência, esse desprendimento responsável.
Milton Nascimento – Para Lennon & McCartney (Milton Nascimento, 1969)
Essa canção do disco do Milton de 1969 me soa quase como uma introdução àquele universo do Clube da Esquina que vai ser construído nos anos seguintes, um universo que acho dos mais incríveis da música brasileira, que traz também uma insistência na unidade da América do Sul, uma identidade coletiva milenar da qual nós pouco sabemos atualmente. Sabemos ou intuímos alguns aspectos através desse tipo de entralaçamento de canção, poesia, música, arte, filosofia, amizade, que ocupa seu lugar criador no continente e que esse pessoal das Minas Gerais construiu com rara grandeza.
- Qual foi o primeiro disco que recebeu como presente, o primeiro que comprou ?
Quando eu tinha uns 6 ou 7 anos eu fiquei vidrado naquela cena de “Curtindo a vida adoidado” (Ferrys Bueller’s Day Off) em que ele canta Twist And Shout num desfile de rua. Eu queria o disco que tinha aquela música de qualquer jeito e um amigo dos meus pais me prometeu que conseguiria. Ele fez todo um teatro, e disse que estava mandando trazer de Liverpool porque aqui tinha esgotado. Quando chegou meu aniversário ele veio com uma caixa em forma de cubo enorme que não tinha nada dentro, e tive que tirar o forro de papel pra encontrar uma cópia de Please Please Me num dos lados da caixa.
Não me lembro bem qual o primeiro disco que eu comprei, provavelmente algum outro dos Beatles em CD, mas mais marcante foi o primeiro disco de música contemporânea que eu comprei e acabou sendo uma música que me influenciou bastante naquela época, que foi o K, do Kula Shaker. Eu não tinha ideia de como soaria, mas não resisti à capa, num impulso que deu certo e que me levou a ouvir mais sons que estavam sendo feitos enquanto eu vivia.
- Se pudesse viajar no tempo, qual época escolheria ?
Acho que iria pro século XVI, poder sentir as potencialidades dos modelos políticos em disputa naquela época, principalmente sobre um Brasil em formação, os Guarani e as missões jesuíticas, o conflito com os sertanistas e com esse modelo de violência patriarcal, de mandonismo privado que acabou se estabelecendo. Na certa eu não duraria muito por lá, talvez fosse mais sábio viajar pra daqui a uns 3 anos e meio no futuro, acho que seria um bom momento pra isso.
- Tem um lugar específico para compôr, um instrumento específico?
Nenhum. Em qualquer lugar estou compondo, e principalmente em trânsito, andando ou dirigindo ou pedalando. Estou sempre pensando nas canções. Arranho o violão ou o piano pra achar as notas e fixar as melodias e a métrica e depois passo um bom tempo decantando aquilo na cabeça até todos os versos saírem.
- Quando descobre a melodia para uma canção, como funciona, fica na sua cabeça por horas, dias, ou desaparece rapidamente ?
Com raras excessões, eu preciso gravar. Rápido. No celular ou no que tiver. Senão vai embora e já se foi muita coisa. Às vezes tenho tipo metade de um disco pronto e recorro a esses arquivos de “lalalas” ou frases soltas pra desenvolver aquelas ideias em outras canções.
- Tem algum novo album em preparação, um novo projecto ?
Tenho alguns, no momento, mas o tempo pra terminar tá faltando ultimamente. Tem um disco que já está pronto, de um projeto meu com o Dinho Almeida, dos Boogarins; se chama Guaxe e vai sair no segundo semestre de 2019 em vinil pela Overseas Artists Records. Tem um álbum que espero lançar ainda esse ano, feito com versos musicados de um poeta português do século XVI; um lance meio prog low-fi que já está sendo feito há uns oito anos. E tem um punhado de canções pra um novo disco de Bonifrate em que também estou trabalhando.
- Planejas mais discos, concertos com Supercordas ?
Acredito que possa acontecer em algum tempo, mas não temos nada definido ou conversado. É engraçado, porque tudo que estou fazendo hoje poderia muito bem ser material dos Supercordas, sabe? E outrora esse foi basicamente um projeto meu, com a contribuição de outros parceiros, em especial do Diogo Valentino, mas no fim eu mesmo acabei puxando tudo pra esse lado mais coletivo, de ser uma banda mesmo, dos músicos botarem sua cara ali. Apesar de ter enriquecido e diversificado a música, acho que isso foi uma das coisas que fez o projeto não durar mais ou não ter gravado mais discos. Eu trabalho melhor sozinho ou com poucos parceiros. Uma banda tem gente demais.
- Quando vem tocar aqui em França ?
Nossa! Isso não seria demais? Não sei, nunca toquei fora do Brasil. Mas nunca se sabe.
- Qual é a pergunta que sempre esperou durante uma entrevista mas nunca veio ?
Não saberia dizer.. acho que talvez artistas anseiem por uma curiosidade mais específica sobre o seu trabalho, no sentido de se procurar entender um álbum ou um conjunto de álbuns como uma obra que quer comunicar alguma coisa, ainda que seja diversa ou nebulosa. É raro que haja esse tipo de interesse por parte da crítica musical no caso de uma arte underground, ele acaba vindo de amigos ou pessoas que se sintonizam com a música e querem se aprofundar nos nossos meios.
- De que mais gostaria de falar hoje?
Difícil não falar de como boa parte da política mundial está se tornando nefasta. Estamos vivendo um atraso monumental na história do Brasil, de recrudescimento de antigos e permanentes sentimentos fascistas por parte das pessoas, de uma negação da democracia e dos aspectos democráticos da vida em comunidade, da própria política. Sei que não estamos sozinhos nessa merda, como um solidário Zizek disse a nós brasileiros há alguns meses. Há de se buscar entendimentos radicais, a meu ver, no sentido de voltarmos às raízes dos problemas que vivemos em sociedade. No nosso caso isso passa necessariamente por entendermos que vivemos uma sociedade estruturalmente escravocrata em pleno século XXI, e com nenhum caminho fácil de fuga à vista.
- Qual das suas canções gostaria que fosse usada para ilustrar esta entrevista ?
Guaianá Mainline (Museu de Arte Moderna, 2013).
Obrigado !